RIO SEVER LEITO DOS MEUS ENCANTOS
O Rio Sever será para sempre o ex-libris da Nossa Terra, nem o matagal que o envolve lhe rouba tamanha beleza, testemunhada por plantas autóctones que nesta altura brotam aromas e colorido ímpares às suas barreiras, enxameadas de brancas papoilas das charas, em simbiose com giestas de um amarelo reluzente.
Todos nós temos um certo encantamento pelo seu leito, principalmente os mais antigos que durante largos anos adormeceram ouvindo as cascatas dos açudes, nas sobras da corrente que movia a mó do moinho. Outros há ainda que em noites de invernia eram obrigado a passar, a vau, o contrabando de café e tripa para o lado de lá, onde a guerra civil era morrida às mãos dos franquistas, de 1936 a 1939, a que Hitler e Mussolini não eram alheios. Estes testemunhos estão e ficarão gravados para o todo o sempre em letra de forma para os vindouros, a que nós nos juntamos para, quem sabe, mais tarde sejam recordados á lareira, onde a brasa da chara,mesmo queimada exala seu cheiro agri-doce.
Era a idade de “jogar à buguelha” e já acompanhava meus pais até às correntes fronteiriças, viveiro de barbos, enguias e bogas com hora marcada nas redes do João Fogueteiro que um belo dia, na casinha do Moinho da Nogueira, me ensinou a lançar a tarrafa, tarefa que fui mantendo viva com a ajuda de um tal guarda-fiscal ratinho, exímio no lançamento e melhor conhecedor dos locais mais apropriados à captura.
Lá fui, todo lampeiro, com minha mãe, até a um pouco acima do Moinho Branco, ela para lavar roupa e eu para pescar, ali onde havia um pequeno areal. Munido de artesanal cana de bambu, meia dúzia de metros de fio de coco e três ou quatro anzóis, descia a minha Rua da Barca quando o vizinho Ti Jaquim Louro – trágica morte a dele - me abordou: “Eh Zé não preciso de mercar jantar, vai haver peixe com fartura”. Cabisbaixo fingi que “era da Póva” e continuei a dar corda às alpergatas.
Aqui chegados, fui procurar gafanhotos e minhocas, mas nem vê-los, tentei alternativas e dei de caras com uma figueira a que o Rio também dava vida. Saquei dois ou três figos, tipo abêbera, mais leitosos que maduros, e preguei com metade no anzol; “apouzei” a cana na margem e fui à cata de variar o menu para os peixotes. Andava eu a levantar lapas e grandes seixos brancos quando minha mãe me grita.
_ Zé, oulha a cana ao rio abaixo!” Corri até ao baixio mais próximo, agarrei a cana que de tão pesada pensei estar a arrancar pela raiz um freixo que “ablavapanhoelo”. Com a “Chá Jaquina” em pulgas, puxei a presa para terra como querendo abraçá-la. Era um valente barbo que serviu para sopas, com poejo do seu habitat, e para alguns doses de postas fritas, antes salpicadas com muito sumo de limão para que as espinhas ficassem estaladiças. Não fora tão tarde e havia de mostrar o meu troféu ao Ti Louro não fosse ele duvidar dos meus créditos, alcunhando-me de mentiroso como são a maioria dos pescadores e…caçadores!
Dias após, era ainda o tempo das comédias na Praça da República – meus senhores e minhas senhoras, hoje há comédias na Praça, onde vão ver os patos marrecos a dançar o chunga-la-chunga-voltei às barreiras fronteiriças acompanhando, desta feita, meu pai. Andava ele a abrir covas para oliveiras do Ti Ernesto, também ele morador na mesma Rua da Barca, junto à Ribeira do Lapão – há quem aproveite as suas límpidas água para adoçar as azeitonas contidas em sacas de rede - enquanto eu dava azo à minha alegria procurando espargos e orégãos para adubar as azeitonas e saladas. Um pouco mais abaixo estava o Moinho do Ica onde, bem mais tarde, saboreei apetitosas sopas de peixe em coucho de cortiça.
No decorrer da minha salutar azáfama, agarrado às moitas para não me desequilibrar, sou assombrado por tamanho ser que de asa aberta, abraçaria qualquer roleiro de trigo, meda de pão que parece ter levado sumiço das redondezas. Esta imagem transportou-me ao mundo dos dinossauros onde cabia perfeitamente este “mirage”, que bem poderia ser um pterodactilo, animal com asas, que remonta ao período Jurássico Superior, cerca de cento e cinquenta milhões de anos atrás. Mas não, era um bufo real, parecido com a coruja, com uma espécie de pequenos cornos, mas de dimensões assustadoras. Até os seus buuuufffooosnocturnos – esses são meus conhecidos quando das esperas aos javalis – nos põem os cabelos em pé.
Este “monstro voador” passou a fazer parte dos meus sonhos de menino, com o Sever como pano de fundo. Aqui voltarei, agora mais mar que corrente, porque os moinhos jamais terão vida, afogados que foram sem dó nem piedade.
José Morujo Júlio
02 de Abril de 2021