TAVEIRA OUSARIA CHAMAR-LHE CONTO ERÓTICO!
Esta estória, não sendo da nossa terra é, contudo, da terra de todos nós, para aqui, tal como eu, rumámos à procura de melhor vida, para a cidade grande, que por isso mesmo nos acolhe sem perguntar quem somos ou donde viemos.
Já na Marinha, tinha eu pouco menos de vinte anos e algum tempo, à noite, na Escola Industrial Marquês de Pombal, em Alcântara, e por isso mesmo já deambulava à vontade por esta Lisboa, ainda que cinzentona, tinha o colorido aqui e ali de cenas pitorescas marcadas por pessoas genuínas.
Era o tempo dos comboios da linha do Estoril (sempre vivi nesta zona mas nunca consegui ser tiu,tás a veer ) com os bancos em madeira, na 2.ª classe, e nada de misturas como o casqueiro escuro bem melhor que o de hoje. Os ronceiros carros eléctricos, com bancos idênticos tinham, no entanto, encostos em palhinha, lá cabiam todas as gentes, mais povinho que finório. E é neste tradicional transporte que se passa a estória de hoje.
Ninguém tem vinte anos, mas eu andava lá perto e estava a bordo do draga minas São Roque que já foi alvo de outra estória. Este vaso de guerra estava a limpar o casco e a fazer a revisão dos motores, na doca seca de Alcântara onde nos revezávamos na escala de serviço.
A bordo, com a energia vinda de terra, só o chocalhar de outras embarcações por perto incomodavam o silêncio da doca iluminada por luzes de um amarelo mortiço que aquecíamos odores vindos do rio numa ambiência de puro embalo. Aqui tinha a rádio de bordo que ouvida na ponte tinha outra sonoridade, porque o Tejo também estava à escuta.
Na Emissora Nacional, a partir da meia noite, num programa de música portuguesa, apresentado pelo mais tarde colega do jornal “Record”, Fernando Correia, ouvia o fadista António dos Santos: “Minha Alma de Amor Serena/Barco sem Rumo e Sem Deus/Anda à Mercê da Tormenta/Nesse Mar dos Olhos Teus”, com aquela voz de “baixo” tão repousante.
Mais tarde mudei para o Programa Dois da mesma Emissora, virado para a música clássica e logo vieram os acordes da 9.ª Sinfonia de Beethoven, sempre em crescendo até que, como que a música fosse trazida por anjos, vindos do Céu, houve-se, absorve-se, o adagio molto e cantabile-andante moderato. O adagio é algo sobrenatural, uma torrente de emoções que nos leva ao êxtase.
Sou um felizardo, sem conhecer uma nota de música, tanto vibro com um fado tradicional (ah, o sublime trinar da guitarra portuguesa), como com um telúrico rancho folclórico (tem de ter acórdão) ou, nas emoções atrás descritas, desta obra de música clássica, tão emotiva, para mais sabendo-se da sua adiantada surdez.
Da minha escotilha de observação observo a tripulação de uma fragata ancorada do outro lado do cais, atarefada com o recolher das amarras, mas já com o velho fogão Hipólito preparado para cozer o almoço que nesse dia era “massa à barrão”, com aqueles canudos que parecem manilhas! Um dos tripulantes, um alfacinha de gema chamava-se Fernando, para os amigos o Freddy: alto, trigueiro, cabelo negro ondulado à força do fixador e poupa à Elvise fazia o trajecto de eléctrico desde Santos até Chelas.
A fragata, de grandes dimensões, era o transporte de então para cargas altamente pesadas, tais como sal, cimento, carvão etc. e mais tarde, melhor apetrechadas, para passageiros fazendo a ligação entre Belém e o Porto Brandão.
O amarelo da Carris era o transporte preferido das classes trabalhadoras logo, homens e mulheres. O Fredy tinha tanto de galã como de rufia, um faia perfeito, qual “ave de rapina” no que respeita ao atiranço. Como era alto, ajudado por um salto pronunciado permitia-lhe “voar” sobre qualquer alvo mal prevenido e se no seu raio de acção coubesse uma moçoila vistosa, era tiro certeiro.
Duas paragens acima, frente à Praça da Ribeira, entravam sempre, mais ou menos à mesma hora, uma airosa varina, a Filomena, mais conhecida por Filó. Era dona de uma banca, porque andar de canasta à cabeça só no cenário da Avenida integrando a marcha de Alfama onde dava nas vistas.
Era fim do mês e entra na plataforma traseira do eléctrico, já à cunha, a jovem vendedeira, cor rosada, lábios carnudos e sobrancelhas ramalhudas; corpo roliço de formas definidas, pretexto para qualquer marujo levantar ferro! Passaram o Cais do Sodré, estação marcada pelo desabamento da cobertura a 28 de Maio de 1963 soterrando uma centena de pessoas, quarenta e nove morreram e sessenta e nove ficaram feridos.
O nosso amigo Freddy começou a preparar a “presa” a qual, devido aos habituais empurrões se vai meter na boca do lobo e pouco depois a roliça alfacinha estava encostada ao fragateiro, de tal modo que ela sentiu um corpo estranho nas suas rijas partes traseiras – se o Taveira lê estas linhas trata-o logo de conto erótico! – e não se conteve dando-lhe forte safanão: “houve lá ó mânfio porque não te vais encostar ao que comeste?”.Desculpe lá menina, mas a verdade é que o meu patrão pagou hoje e tudo em moedas de dez escudos, daí o rolo!
Um mês depois, tudo premeditado, o “manguelas” prepara nova investida colocando-se estrategicamente no “cesto da gávea” que lhe permitiu nortear seus intentos. A “presa”, que pareceu querer “dar-se à morte”, vinha de saia travada cingida ao corpo e racha pronunciada que lhe permitia subir para a plataforma. Foi-se chegando ao predador que num ensaiado gesto a encaixou fazendo conchinha mesmo naquela posição. A cada solavanco do transporte a luta tornava-se mais acesa, até que chega a Alfama e entre um olhar pestanudo e atrevido toque de anca ela sussurra ao ouvido do marujo de água doce: “Ah meu fragateiro do mar da palha, como és mestre a atracar-me de popa, com que então este mês foste aumentado. Agora porta-te bem para que o patrão te continue a engrossar a jorna…”
José Morujo Júlio
01 outubro 2020